22 de outubro de 2007

Biblioteca Verde


Papai, me compra a Biblioteca Internacional de Obras Célebres.
São só 24 volumes encadernadosem percalina verde.
Meu filho, é livro demais para uma criança.
Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo.
Quando crescer eu compro. Agora não.
Papai, me compra agora. É em percalina verde, só 24 volumes. Compra, compra, compra.
Fica quieto, menino, eu vou comprar.
Rio de Janeiro? Aqui é o Coronel.Me mande urgente sua Bibliotecabem acondicionada, não quero defeito.Se vier com um arranhão recuso, já sabe:quero devolução de meu dinheiro.
Está bem, Coronel, ordens são ordens.S
egue a Biblioteca pelo trem-de-ferro,fino caixote de alumínio e pinho.
Termina o ramal, o burro de cargavai levando tamanho universo.
Chega cheirando a papel novo, matade pinheiros toda verde.
Sou o mais rico menino destas redondezas.(Orgulho, não; inveja de mim mesmo)
Ninguém mais aqui possui a coleçãodas Obras Célebres. Tenho de ler tudo.
Antes de ler, que bom passa a mão no som da percalina, esse cristal de fluida transparência: verde, verde.Amanhã começo a ler. Agora não.
Agora quero ver figuras. Todas.Templo de Tebas. Osíris, Medusa,Apolo nu, Vênus nua... NossaSenhora, tem disso nos livros?
Depressa, as letras. Careço ler tudo.
A mãe se queixa: Não dorme este menino.O irmão reclama: Apaga a luz, cretino!
Esparmacete cai na cama, queima a perna, o sono.
Olha que eu tomo e rasgo essa Biblioteca antes que pegue fogo na casa.
Vai dormir, menino, antes que eu perca a paciência e te dê uma sova.
Dorme,filhinho meu, tão doido, tão fraquinho.
Mas leio, leio. Em filosofias tropeço e caio, cavalgo de novo meu verde livro, em cavalarias me perco, medievo; em contos, poemas me vejo viver. Como te devoro,verde pastagem.
Ou antes carruagem de fugir de mim e me trazer de volta à casa a qualquer hora num fechar de páginas?
Tudo que sei é ela que me ensina.O que saberei, o que não saberei nunca
está na Biblioteca em verde murmúrio de flauta-percalina eternamente.

Carlos Drummond de Andrade

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